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Entrevista com Fernando Ennes, da GOL Linhas Aéreas

Cultura de Segurança, Setor Aéreo| Views: 358

Fernando Ennes

A Cosafe LATAM conversou com Fernando Ennes, Gerente de Continuidade do Negócio (que engloba Resposta a Emergência e Gestão de Crise) da GOL Linhas Aéreas, uma companhia com mais de 20 anos de atuação, que emprega atualmente cerca de 13 mil colaboradores e realiza mais de 600 voos/dia, com uma média de 85.000 pessoas embarcadas.

Fernando já está há 20 anos no setor da aviação, sendo 15 deles na GOL e 10 à frente desta função. Na entrevista abaixo, ele fala sobre como a Cultura de Segurança permeia toda a organização (principalmente depois do acidente de 2006, que trouxe grandes aprendizados) e como é feita a preparação e treinamento dos colaboradores para o enfrentamento de situações críticas. Confira abaixo:

1) COSAFE: Como as equipes internas são treinadas, para que os Planos de Resposta a Emergência sejam devidamente seguidos? O que é feito para que toda a cadeia saiba como agir em um momento crítico?

FERNANDO: A estrutura do nosso treinamento envolve todos os colaboradores. Eles recebem um overview quando entram, que mostra a estrutura existente, como funciona, o que cada colaborador pode ou não fazer ou falar, etc. Já as pessoas que vão participar ativamente na resposta às emergências recebem outro treinamento mais específico e detalhado, pois no caso de um acionamento, toda a estrutura hierárquica da companhia se modifica. Uma parte cuida das operações que continuam acontecendo e há um outro time dedicado ao gerenciamento da crise, seguindo uma hierarquia e liderança diferentes. Os colaboradores são treinados quanto a estrutura que deverão seguir, onde estão inseridos, qual o report, o que precisam fazer, etc. Quando se trata de uma área muito técnica (como Jurídica, Médica, etc.), só estipulamos o que precisamos receber deles. Já as áreas ou atividades que só existem para a Resposta a Emergência, como por exemplo o centro de Assistência Humanitária, somos nós que definimos o passo a passo do que precisa ser feito e treinamos toda a equipe. Dentro da GOL, há somente 2 diretorias que não têm envolvimento com esse tema porque são de estratégia do negócio. Todas as demais têm algum procedimento de resposta à emergência.

Pelo menos 1 vez por ano fazemos treinamentos Tabletop, colocando todo o time em uma mesa e apresentando um cenário. Também realizamos simulados de uma situação real, envolvendo todas as atividades e áreas necessárias. Esse é o melhor deles, porque foge da teoria e permite ver bastante coisa que pode melhorar, que não funcionou ou que precisa de reavaliação. Fazemos com nuances e cenários diferentes, para tentar cobrir o máximo de possibilidades. Quero ressaltar aqui o nosso grupo do SAT (Special Assistance Team), formado por colaboradores que se voluntariam para estar disponíveis em situações críticas. É um time dedicado, que atua com compaixão e empatia na prestação de suporte e apoio.

2) COSAFE: Você acha que a cultura de segurança está bem implantada em todos os níveis? Como isso se faz perceber, no dia a dia da organização?

FERNANDO: Na aviação a Cultura de Segurança existe porque são décadas e décadas fomentando e aprendendo com a história e eventos ocorridos ao redor do mundo.  A visão que antes era mais reativa, hoje traz atitudes proativas e preditivas, com vistas a reduzir os riscos na operação. Na GOL essa cultura é muito forte, explicitada como o nosso valor número 1. Tudo o que fazemos reflete o olhar para a Segurança das operações e pessoas.

Considerando os temas de resposta a emergências e gestão de crises,  tenho o privilégio de ter a cultura como alicerce fundamental em todos os níveis. O acidente de 2006 trouxe esse senso de urgência que permeia a organização e isso me ajuda a não encontrar barreiras dentro da empresa, para falar sobre esse tema ou sobre o que precisamos trabalhar. Isso é muito importante.

Todos os dias monitoramos os diversos aspectos de segurança, os principais riscos, onde temos operações que precisam de mais atenção, o que podemos melhorar, etc. E não é na estratégia do negócio, porque não olhamos para isso, nós vemos as máquinas, os processos, as manutenções. Muitas vezes os riscos até já são baixos, mas nos forçamos a baixá-los ainda mais. Há um trabalho enorme sendo feito diariamente para reduzi-los para o mais próximo de 0 e para que os incidentes e acidentes não aconteçam. Mesmo com todo esse trabalho, existe uma remota possibilidade, e  acreditamos nisso para nunca perder o foco e continuar buscando a excelência.

3) COSAFE: Vocês usam alguma tecnologia para apoiar o processo, agilizando ou deixando os protocolos acessíveis?

FERNANDO: Sim, temos bastante coisa, mas podemos melhorar. Usamos tecnologias tradicionais, mas estamos em um momento em que a gente pode fazer essa evolução e tornar isso mais fácil, simples e inteligente, além de estar disponível na palma da mão das pessoas. Claro que não vou conseguir colocar tudo no celular, mas quanto mais coisas conseguirmos deixar acessível (principalmente aos colaboradores que não têm isso como atividade principal no dia a dia), mais fácil ficará para elas responderem e para nós nos organizarmos. Nossa maior preocupação é informar e assistir  aos familiares das vítimas de forma adequada, verificada e confirmada. Para isso eu preciso que tudo na operação esteja organizado e que as informações do time que está respondendo fluam corretamente.

4) COSAFE: No caso de um incidente grave, como lidar com todos os públicos envolvidos? Como fazer com que a comunicação priorize quem tem que ser priorizado, sem deixar de lado os outros interessados que também precisam de informação?

FERNANDO: Temos um plano e uma estrutura de comunicação bem desenhados e abrangentes, que é colocado em prática nesse momento. O familiar é nossa prioridade para informação e assistência. Ele vai saber primeiro o que está acontecendo e depois eu falo para os demais. Este é um dos eventos que mais atrai a atenção das pessoas, elas querem saber quem estava lá. Mas eu tenho que ter o cuidado de primeiro notificar os familiares, respeitar o momento deles e garantir que a nossa atenção seja direcionada a eles. Isso é o mais importante. Outra preocupação é com as cerca de 13 mil pessoas que trabalham na GOL, além dos parceiros, que também precisam ser informados. 

Sabemos que, nessa overdose de informações e fake news, não vamos controlar o que será publicado e esse nem é o nosso objetivo. Hoje em dia, todo mundo nas redes sociais é “especialista” e pode falar o que quiser. Vão surgir vários especialistas em aviação, com todas as teorias do que podia ter sido feito, opiniões e coisas que podem não ser verdade. Nós não alimentamos essas discussões. Temos o compromisso de trazer apenas fatos confirmados. Não cabe a nós especular, alimentar teorias ou buscar culpados.

Claro que somos questionados sobre o que aconteceu, mas essa não é uma resposta que temos no primeiro momento. O processo de investigação é complexo, com diversos fatores envolvidos e tudo isso é muito bem analisado pelos órgãos de investigação oficial, responsáveis por prover essa informação. Temos que ter muito tato e cuidado com isso. Trabalhamos somente com o que temos como confirmado, com o que está acontecendo realmente. 

Então, quanto a gente fala de prioridade de comunicação, é nessa ordem: familiares e equipe interna primeiro, depois as autoridades (que eu preciso abastecer de informações) e os demais públicos depois. 

5) COSAFE: O acidente de 2006 certamente trouxe um grande aprendizado. Houve algum outro momento icônico na história da companhia?

FERNANDO: Quando falamos de 2006, falamos do único acidente com vítimas que tivemos. Para esse tema, foi o cenário mais crítico. Vivemos outros cenários de crise que nos ajudaram a melhorar, mas no que se refere a impacto e peso, não há comparação. A pandemia foi um cenário de crise porque o setor aéreo foi duramente afetado. A greve de caminhoneiros e a guerra (Rússia X Ucrânia) também impactaram o setor. Mas tudo isso é parte do negócio, são coisas que a gente tem que gerenciar. 

Mas quando se trata de perdas de pessoas que estavam no nosso avião, somos responsáveis e precisamos responder. Quando falamos de vidas, não há comparação com nenhuma outra crise. A gente teve 154 vítimas fatais e foram 154 famílias que tiveram que reaprender a viver sem aquela pessoa. Quanto a isso não há comparação e nem reparação. Existem muitas teorias de superação do luto e eu não vou me aprofundar nelas porque não sou especialista nisso, mas acredito que ninguém supera o luto. Acho que se aceita em algum momento (cada um a seu tempo) e se aprende a seguir a vida. Não é superar o luto, porque a dor e a saudade sempre vão estar lá. Não há nada que eu ou qualquer outra pessoa faça que vá mudar isso, e temos isso bem claro.

6) COSAFE: Como você percebe a evolução do setor aéreo como um todo, no que se refere à Segurança?

FERNANDO: O setor da aviação evoluiu em todos os lados. Há tecnologia embarcada no avião e também em volta, melhorias nos processos, treinamentos muito mais adequados, qualificação das pessoas, etc. Nada disso veio de graça, veio de aprendizados a partir de episódios anteriores. De 1990 para trás, há um número altíssimo de acidentes. Havia menos procedimentos, menos padrão, menos tecnologia. Se hoje o número de acidentes é tão baixo na aviação, é por conta disso. Em 2021 a indústria total (não só a GOL) realizou aproximadamente 26 milhões de voos, e desse número, somente 26 sofreram acidentes. Mas segundo o anexo 13 da Convenção de Aviação Civil Internacional, muitos cenários são considerados acidentes, mesmo que ninguém se machuque. Por exemplo, se um avião pousar, o trem de pouso ceder e o avião parar com o bico encostado no chão, é um acidente porque houve um dano grave e estrutural no avião, mas todo mundo saiu ileso. Portanto, desses 26 acidentes de 2021, somente 7 tiveram vítimas (este é o menor número nos últimos 5 anos). E é muito importante frisar que todos esses acidentes foram em empresas que não têm o IOSA (Iata Operation Safety Audit), um certificado de segurança da IATA (International Air Transport Association) que é opcional, mas que a maior parte das grandes empresas aéreas possui e renova a cada 2 anos. É uma auditoria minuciosa que avalia aproximadamente 1000 requisitos, todos relacionados à segurança da operação. Isso faz com que a taxa de incidentes e acidentes nessas companhias seja baixíssima. Então, quando olhamos para esses 26 acidentes de 2021, 7 deles com vítimas, nenhum foi em uma empresa aérea que era parte da IATA ou membro IOSA. 

A taxa global de acidentes também foi a menor dos últimos 5 anos e ficou em 1,01 milhão. Já entre as empresas que têm IOSA, a taxa foi de 0,45 milhão. É um número extremamente baixo, o que demonstra como a indústria da aviação é muito segura. Por ser uma atividade de risco, obviamente não está isenta de que acidentes aconteçam, mas quando falamos da aviação civil, especificamente nas empresas certificadas, estamos lidando com taxas bastante baixas, que deixam muito remota a possibilidade de acontecer um acidente aéreo. O transporte aéreo de massa e de longas distâncias não tem comparação com nenhum outro modal: é de longe o mais seguro no mundo e atuamos para que ele seja cada vez mais. O meu trabalho, especificamente, é pensar nisso todos os dias. 

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